domingo, 17 de junho de 2018

O Futebol e A Violência Doméstica


De acordo com um estudo realizado na Universidade de Lancaster, na Inglaterra, após jogos da seleção inglesa os casos de violência doméstica saltam em 26% quando a seleção ganha ou empata e em 38% quando a seleção perde. A pesquisa ainda mostra que nos dias após as partidas, há um aumento de 11% nos casos, comparando aos dias em que não há jogos. Na Copa de 2014, os jogadores da Costa Rica foram requisitados pelo seu governo para uma campanha emergencial contra a violência doméstica, devido ao alarmante aumento das agressões nos dias de jogo.

No Brasil, infelizmente ainda não existem pesquisas mais profundas sobre o tema, porém, um levantamento feito pelo Cadastro Nacional de Violência Doméstica revelou que no Rio de Janeiro o número de incidentes aumenta nos dias de partidas de futebol. É nítido também para as delegadas a relação entre os jogos e o aumento da ocorrência das agressões, como relatou Rosmary Corrêa, que chefiou por 5 anos a primeira Delegacia de Defesa da Mulher: "Pela minha experiência posso afirmar que a violência doméstica aumenta principalmente nos dias de clássicos, nos finais de semana".

O mesmo fenômeno foi encontrado em pesquisas nos Estados Unidos, onde o gatilho para a violência são as partidas de futebol estadunidense, que é um esporte diferente do futebol predominante na América e na Europa. Isso mostra que não é o esporte em si que proporciona um estado alterado em seus espectadores, mas sim, as características do esporte e o conjunto de valores e simbologias que ele traz consigo somados ao contexto social e cultural em que eles estão inseridos. Nestes dois casos, podemos citar a intensificação da rivalidade, da masculinidade e da violência.

No Brasil, o futebol, tanto prática como culto, faz parte da construção da masculinidade e é, ainda, ambiente predominantemente masculino, dos que amplamente perpetuam muitas das características dos estereótipos de gênero, responsáveis por diversas formas de discriminação. Os conceitos de manutenção da honra e de superioridade, da meritocracia e da exaltação da força física são importantes pontos de convergência entre o machismo e o futebol, que impulsionados pelo consumo de álcool, outras drogas e pela tensão das partidas, podem ter consequências negativas tanto entre os próprios homens, quanto para as mulheres. 




Além disso, a forte cultura do futebol no Brasil acaba por naturalizar comportamentos discriminatórios e agressivos além dos misóginos xingamentos e da musificação das mulheres. É costume entre as torcidas o uso de termos racistas e LGBTIfóbicos e o ódio ao time rival. O futebol obviamente não é pioneiro nem o único a agrupar e difundir um conjunto de práticas tóxicas, entretanto, sendo um movimento de massa, ele acaba por legitimar tais expressões negativas que já são presentes em muitas das outras áreas da vida da população e que vêm sendo enfrentadas devido a inviabilidade da sua continuidade. Sendo assim, não é surpreendente encontrar relação entre crimes de ódio e gênero relacionados a eventos que carregam tal conjunto de valores.

Por outro lado, além de permitir aos homens que extravasem sua raiva e violência indiscriminadamente, o ambiente do futebol também é propício para demonstrar energeticamente outras emoções e valores, como afeto, parceria, confiança, amor, paixão, dedicação, comprometimento, e também para chorar e para abraçar. Porém, isso tudo acontece de maneira direcionada a outros homens e ao clube, passando a ser visto como fraqueza se demonstrado em outras áreas da vida e para mulheres.

Existem medidas tidas como preventivas em relação ao combate à violência no meio esportivo, como a proibição de bebidas alcoólicas nos estádios e campanhas publicitárias sobre violência doméstica nos estádios e arredores. Embora haja relação entre consumo de álcool e violência doméstica, o conjunto de valores agressivos que transforma o futebol num símbolo, perde apenas um dos seus fatores com essa proibição. Vale ressaltar que o consumo de álcool intensifica a desinibição, autoconfiança e os estados emocionais e causa diminuição das capacidades de julgamento e controle. Isso significa que o consumo de bebidas alcoólicas não cria um comportamento, apenas dá proeminência ao conjunto de crenças latentes no imaginário da pessoa.

O futebol como expressão popular possui uma rica história no Brasil e em outros países, como no período da Ditadura Militar, quando os times de várzea, que eram uma das poucas associações permitidas pelo governo, se criavam como forma de resistência ao regime. Da mesma forma, muitas torcidas hoje em dia usam seus espaços para protestar contra o atual governo ilegítimo e contra as práticas machistas, racistas e imperialistas no futebol. Todavia, o esporte foi capitalizado ao extremo, transformado em uma espécie de mercado financeiro capaz de coisas desumanas para manter sua atratividade comercial e opera de forma que mantem a mentalidade patriarcal e colonialista. Devido a isso, as características violentas e elitistas do futebol devem ser, em primeiro lugar, reconhecidas e admitidas pelos seus fãs e, em segundo lugar, combatidas de formas mais diretas e revolucionárias. Se queremos a continuidade do futebol, nós teremos de mudá-lo, nós teremos que torná-lo humano novamente.


Referências:

http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-11/agressoes-mulheres-no-rj-aumentam-nos-fins-de-semana-e-em-dias-de

http://www.cisa.org.br/artigo/229/alcool-sistema-nervoso-central.php

http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0022427813494843

http://www.lancaster.ac.uk/news/articles/2014/world-cup-football-is-a-risk-factor-for-domestic-violence/

http://www.ludopedio.com.br/arquibancada/muito-alem-da-jabulani-o-futebol-e-as-violencias-contra-as-mulheres/

https://www.corinthians.com.br/corinthians-apoia-brasil-mulher-e-veste-camisa-todos-em-campo-no-combate-violencia-contra-mulher/

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3712874/

https://www.newstatesman.com/politics/sport/2016/07/what-does-it-mean-when-major-football-tournaments-increase-incidents-domestic

https://www1.folha.uol.com.br/esporte/folhanacopa/2014/07/1480425-vitorias-da-costa-rica-aumentam-violencia-domestica-e-jogadores-fazem-campanha.shtml

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