segunda-feira, 20 de novembro de 2017

DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA E A MULHER NEGRA NO BRASIL


O Dia da Consciência Negra é celebrado no Brasil em 20 de novembro, data escolhida em homenagem a Zumbi dos Palmares, homem negro que lutou contra a escravidão e acredita-se ter morrido neste dia, em 1695. A data pretende inspirar a reflexão sobre o assunto e motivar mudanças em prol de uma sociedade livre do racismo.

As lutas raciais e étnicas historicamente unem homens e mulheres de maneira mais intensa do que se pode observar em outros movimentos sociais, devido à natureza violenta das opressões sofridas por estes grupos. No entanto, na nossa sociedade ocidental atual, aonde as relações capitalistas se unem ao patriarcado a fim de explorar, objetificar e desunir a classe trabalhadora, os negros são preteridos e marginalizados de diversas formas e recai, de forma mais intensa, à mulher negra a carga combinada de racismo e misoginia institucionalizados na sociedade.

O Mapa da Violência de 2015 mostra que o número de assassinatos de mulheres negras aumentou 54,2% em 10 anos (2003 a 2013) e também que, em 2013, morreram 66,7% mais meninas e mulheres negras do que brancas no Brasil. 27% das mortes de mulheres ocorreram no próprio domicílio, enquanto este índice para os homens é de apenas 10%. Além disso, as mulheres que procuram atendimento por sofrerem algum tipo de violência são agredidas na metade dos casos por seus próprios parceiros ou ex parceiros, o que revela a grande incidência de violência doméstica contra as mulheres, principalmente negras, que são as vítimas prioritárias. 

Dados do Dossiê das Mulheres Negras, publicado pelo Ipea em 2013, demonstram que a renda per capita das famílias chefiadas por mulheres negras está abaixo das chefiadas por mulheres brancas, que estão abaixo das chefiadas por homens negros ou brancos. No funcionalismo público e militar a posição da mulher negra é a mesma. Além disso, nas regiões metropolitanas, 46% das mulheres negras em idade adulta vivem do trabalho informal. No que se refere à escolarização, 20% dos estudantes do Ensino Superior são mulheres negras enquanto as mulheres brancas são 36%. Vale ressaltar que a população de mulheres negras no Brasil ultrapassa um quarto e que os índices brasileiros de escolaridade apresentaram crescimento na última década devido aos programas de inclusão social do Governo Federal, como Prouni, cotas raciais, Bolsa Família e Programa Brasil sem Miséria.

                                  


Embora essas medidas tenham sido tomadas a fim de diminuir a desigualdade social no Brasil, outras questões explicitam a negligência do Estado e da sociedade para com a mulher negra. A cada 2 dias morre no Brasil uma mulher vítima do aborto clandestino. A grande maioria dessas mulheres possui baixa renda e escolaridade e, de acordo com o perfil socioeconômico dos brasileiros, são negras. Outrossim, essas mulheres não têm acesso amplo aos seus direitos fundamentais, pois possuem atendimento médico e escolar de baixa qualidade e são excluídas dos espaços sociais pela falta de estrutura e cultura para o acolhimento de crianças, revelando a característica capitalista de um Estado que exige a mão de obra integral dessas mulheres, sem prover condições mínimas para que isso ocorra de maneira humanizada.

No Brasil, como em diversas outras regiões do mundo que foram invadidas e exploradas pelos europeus, pode-se observar a interseccionalidade entre raça e classe. A população mais pobre, que no caso é também negra, não tem acesso real aos seus direitos constitucionais, embora essa falha no preceito constitucional de igualdade seja mascarada pela naturalização das opressões de raça, classe e gênero, e pela crença na meritocracia, tornando os comportamentos discriminatórios tão subjetivos e tênues a um nível em que é difícil percebê-los ou enxergá-los como prejudiciais. Isso é o que torna possível a perpetuação destas opressões em todas as camadas da sociedade de maneira ideológica.

Sendo assim, a conscientização sobre o processo histórico brasileiro que trouxe pessoas do continente africano para o Brasil como escravos, sobre a supressão da sua cultura e imposição da cultura europeia, sobre as lutas desse povo para se libertar dos seus opressores e sobre as consequências dos séculos de segregação na sociedade atual são imprescindíveis para o entendimento da necessidade da valorização da cultura negra no Brasil e das medidas de reparação histórica, com o intuito de proporcionar justiça social real a todos os cidadãos brasileiros.

Junto a isso, a estrutura patriarcal capitalista invisibiliza as mulheres, restringindo sua influência e importância social aos limites domésticos, ao poder de consumo e à força de trabalho. Essa lógica somada ao racismo coloca a mulher negra em uma posição completamente desfavorável em nossa sociedade, sendo preterida nas relações de trabalho, de mercado, nos serviços públicos a até mesmo nas relações conjugais, como mostra o último Censo de 2010. É por tudo isso que o feminismo negro é extremamente necessário, juntamente com o mulherismo africano. Uma sociedade igualitária, em que homens e mulheres, brancos e negros tenham a mesma relevância apenas será possível se considerarmos as particularidades históricas visíveis através da materialidade e expressas, neste caso, através de desigualdades que devem ser combatidas tanto na esfera social quanto individual. 



Fontes:







quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Estatuto do Nascituro e a Questão do Aborto

O Estatuto do Nascituro (PL 478) é um projeto de lei de 2007, de autoria de deputados da bancada religiosa, que propõe a extensão da criminalização do aborto, bem como outras pautas extremamente conservadoras do ponto de vista social e também científico. Outras propostas também tramitam no Congresso com sugestões parecidas, como a PL 5069 de 2013 e a PEC 164 de 2012, do ex deputado Eduardo Cunha, que prevêem a ampliação da tipificação do aborto e a alteração constitucional que garantiria a “inviolabilidade da vida desde a concepção”. O senador Magno Malta recentemente propôs a PEC 29 de 2015 que é idêntica a de Eduardo Cunha.


Além destas, a PEC 181/2015, de Aécio Neves, se popularizou na Câmara por sugerir o aumento da licença maternidade nos casos de mães que dêem à luz bebês prematuros. Entretanto, a proposta foi alterada para a inclusão de um item que define que a vida começa na concepção. Esta alteração estratégica visa claramente barrar os avanços dos movimentos de mulheres que lutam pela descriminalização do aborto. A deputada Erika Kokay foi uma das questionadoras da legitimidade desta manobra, que fez com que a PEC ficasse conhecida como a PEC Cavalo de Troia.


Essas propostas legislativas são um reflexo da onda conservadora que se faz presente no mundo todo, mas, caracteristicamente no Brasil, vem acompanhada do crescimento das igrejas evangélicas (61,45% de 2000 a 2010 - IBGE), que possuem caráter altamente conservador e misógino, pregando a submissão da mulher ao homem, ao passo que retira da mesma qualquer forma de autonomia, independência ou agência nas mudanças sociais. Esses grupos fundamentalistas, apoiados até mesmo por alguns liberais, assumem que atos sexuais são ações conscientes e que as gravidezes geradas pelos mesmos são, em qualquer circunstância, irrevogáveis. De acordo com esse conceito, a realidade material na qual a mulher está inserida não tem peso, seja no aspecto psicológico, médico, emocional ou econômico.


Todos esses projetos de lei possuem uma particularidade que envolve a atribuição de pessoalidade ao feto e a sacralização da vida. Embora esses conceitos sejam bastante sedutores e se confundam com princípios dos direitos humanos, eles na verdade perpetuam a dinâmica patriarcal, se considerarmos que a sociedade em que vivemos ainda não superou as desigualdades de gênero, especialmente em relação à violência sexual e doméstica e a responsabilidade paterna, assim como não possui através do Estado medidas assistenciais suficientes para a mulher e para a criança. Desse modo, a mulher sob essa nova lei seria uma espécie de incubadora, sem autonomia sobre a própria vida, completamente coisificada.


O Estatuto do Nascituro, além de criminalizar o aborto até mesmo nos casos permitidos por lei desde 1940, como estupro ou risco de morte da mulher, também o torna crime hediondo e prevê que a apologia ao mesmo e incitar ou facilitar que uma mulher realize um aborto se tornem crimes. A proposta ainda restringe tratamentos de fertilidade e pesquisas científicas que utilizam embriões gerados in vitro, como pesquisas com células tronco, clonagem ou qualquer outro método, mesmo que eticamente aceito, já que a vida do embrião seria salvaguardada desde a concepção, ainda que artificial.



                                    



Outro ponto polêmico do estatuto é o artigo 13, que disserta sobre os casos de estupro. O artigo propõe que seja responsabilidade do genitor, leia-se estuprador, arcar com a pensão alimentícia até a criança completar 18 anos. Caso o estuprador não seja identificado, essa responsabilidade passaria a ser do Estado. Esse artigo específico deixa claro o caráter misógino desta proposta, quando sugere com naturalidade que a mulher que esteja grávida em decorrência de um estupro seja exposta à uma segunda violência, que é o convívio com seu agressor, sem poder optar por interromper a gravidez que não ocorreu de um ato sexual consentido, e sim de uma violência das mais tiranas que o ser humano é capaz de cometer.


Além disso, levando em consideração que o estuprador identificado permanecerá no cárcere por alguns anos devido ao crime cometido ou que ele não seja identificado, recairia exclusivamente sobre a mulher o cuidado integral com a criança. Ou seja, a responsabilidade criminal é retirada do homem e transmitida à mulher, que pode escolher entre parir a criança enquanto o genitor (estuprador) permanece isento de responsabilidade paterna ou cometer um aborto clandestino correndo risco de saúde e prisão. Através desse artigo é possível perceber mais claramente como essa proposta ataca os direitos fundamentais de autonomia e liberdade do indivíduo.


Qualquer medida que altere a ordem social, como a mudança ou criação de uma lei, deve trazer um benefício maior do que as perdas que ela promove ou do que o benefício anterior. Nesse sentido o Estatuto do Nascituro falha, pois ele na verdade não amplia os direitos do nascituro, os quais já estão previstos no artigo 2º do Código Civil de 2002, no artigo 7º da lei 8560/1992, nos artigos 877 e 878 do Código de Processo Civil e nos artigos 7º e 8º do Estatuto da Criança e do Adolescente.


Ao contrário, essa proposta desconsidera que a cada 2 dias uma mulher morre devido a complicações decorrentes de aborto clandestino no Brasil e que essas mulheres, em sua maioria, possuem baixa renda e escolaridade, normalmente sendo privadas do acesso aos seus direitos básicos garantidos pela constituição. Vale ressaltar que nenhum dos projetos citados foram originalmente propostos por mulheres, o que deixa claro mais uma vez o teor patriarcal dessas medidas, que visam manter a mulher sob controle, como cidadã de segunda classe, escrava do Estado, sem autonomia sobre a própria vida e sujeita, a qualquer tempo, a uma gravidez compulsória.


Numa sociedade racista e de classes segregadas como a nossa, as mulheres ricas possuem condições econômicas e podem procurar atendimento médico especializado e privado para realizar um aborto, sem sofrer as sanções previstas em lei por isso, enquanto as mulheres pobres e negras padecem, seja nas clínicas clandestinas, na precariedade do atendimento médico público, na penalização desproporcional ou na solidão da maternidade. Uma proposta como essa não somente não acabaria com os abortos que já acontecem, como também potencializaria os abortos clandestinos, o preconceito contra as mulheres e o poder punitivista do Estado. A criminalização proposta não tem a intenção de neutralizar, ela tem a intenção de atingir, e ela escolhe uma classe, um gênero e uma cor. 


Fontes: