quarta-feira, 24 de junho de 2020

Entre as Linhas de Gênero: A Ciência da Identidade Transgênera


Between the (Gender) Lines: the Science of Transgender Identity 
Publicado na SITN (Science in the News) da Universidade de Harvard (EUA) 
Tradução: Maila Costa 
Figuras: Brad Wierbowski
*Nota da tradutora: Queer em inglês pode se referir à comunidade LGBT e não necessariamente à "Teoria Queer".



Pense na sua característica mais marcante: pode ser seu sorriso radiante ou seus longos dedos de pianista. Pode ser também seu arremesso certeiro ou o jeito que você recita os sonetos de Shakespeare sem hesitar. Ou talvez seja sua inclinação para o conhecimento científico. Seja lá o que for, essa provavelmente não é sua característica mais evidente para o mundo ao seu redor. Na verdade, para os outros nossa característica predominante é justamente a que faz com que nenhum de nós se saliente. Essa característica não está aberta a opinião, ela nos é atribuída ao nascer ou antes mesmo do nascimento: você é homem (masculino) ou mulher (feminino)? 

A identidade de gênero está presente em todos os aspectos das nossas vidas, ditando o desenrolar das nossas conversas, nossos locais de trabalho, nossos relacionamentos e até mesmo nossos produtos de higiene. Antes de receber um nome, a maioria das crianças têm seu sexo atribuído por terceiros baseado na aparência dos seus órgãos genitais externos. Essa determinação é dada de forma tipicamente binária, sem expectativas de ambiguidade. Essa é a norma, mas teria essa simplicidade desencorajado a busca por mais conhecimento sobre o assunto? 

Em março de 2016, o governador do Estado da Carolina do Norte, Pat McCrory, aprovou uma lei que bane pessoas dos banheiros públicos caso os mesmos não correspondam ao seu sexo biológico atribuído no nascimento. Essa legislação controversa foi a primeira do tipo nos Estados Unidos, certamente não por falta de tentativas anteriores, já que os projetos legislativos acerca do uso dos banheiros públicos sempre estiveram em discussão desde sua implementação, no século XIX. Dezenas de estados, principalmente no Centro-Oeste e Sul, tentaram sem sucesso aprovar esse tipo de lei em 2015. O clima político carregado produziu muitos debates tensos sobre gênero e direitos LGBT e é claro que essas discussões estão há muito atrasadas. Mas se iremos regular o gênero, primeiro devemos avaliar a extensão do nosso conhecimento sobre o assunto. O que sabemos das "causas" do fenômeno da identidade transgênera e o que isso significa para o futuro da política transgênera? 


Os ABCs e (LGBTQ+) do Gênero e da Sexualidade 

Primeiramente, vejamos as definições controversas. Seria negligente afirmar ser possível definir e categorizar todas as variações da sexualidade e gênero humanos e esse é o motivo pelo qual a sigla utilizada pela comunidade continua crescendo, mesmo admitindo humildemente não incluir a todos. Os rótulos são úteis em alguns aspectos, bem como qualquer outro rótulo que denote origem ou papel, eles nos ajudam a navegar por situações sociais e muitas vezes podem ser sinal de respeito. Categorizar é uma inclinação natural dos humanos, mas generalizações podem se tornar estereótipos. Para limitar o escopo deste artigo iremos focar em identidade transgênera.


Figura 1: Uma incompleta e incompreensível representação de identidade de gênero e orientação sexual. Indivíduos transgêneros são aqueles que se identificam com um gênero que difere do seu sexo atribuído. Essa é uma faceta da identidade que é completamente distinta da orientação sexual. Estes gráficos não representam o espectro completo de cada faceta, já que elas são multidimensionais. Por exemplo, podem existir gêneros que alguns consideram não ser nem masculino nem feminino. Além disso, não existem linhas que dividem essas identidades sendo que elas podem ser consideradas maleáveis e sobrepostas.



As pessoas que se consideram transgêneras (o T em muitas siglas da comunidade Queer) são aquelas que se identificam com um gênero que difere do seu sexo atribuído (Figura 1). Isso justapõe o cisgênero, ou aqueles que se identificam com seu gênero atribuído. Embora os sexos atribuídos sejam tipicamente masculino ou feminino, quase sempre designados no momento do nascimento, ser transgênero não limita a identidade de gênero a essas duas categorias, sendo que muitos que se identificam como transgêneros não se sentem exclusivamente masculinos ou femininos. É importante ressaltar que identidade transgênera  independe de orientação sexual. O subconjunto de transgêneros que escolhem passar pela cirurgia de reatribuição sexual são normalmente conhecidos como transsexuais. 

A identidade transgênera há muito tempo vem sendo associada à baixa saúde mental, principalmente através dos diagnósticos de “desordem de identidade de gênero” e “disforia de gênero”. Entretanto, a Organização Mundial de Saúde está ativamente trabalhando para desclassificar a identidade transgênera como uma doença mental, uma mudança parcialmente motivada por um estudo recente que desacopla os problemas mentais e físicos experienciados por transgêneros da sua identidade de gênero. Em vez disso, aqueles que apresentam doenças podem certamente atribuir suas aflições ao estigma social, discriminação e violência.


“Está tudo na sua cabeça. Exceto quando não está”

A determinação de sexo da maneira que somos codificados em um sexo biológico é complicada por si só. Existem muitas outras opções além de homem e mulher e incontáveis espécies que conseguem transicionar de um sexo pra outro durante seu tempo de vida. Entretanto, a maioria dos mamíferos é cisgênera macho ou fêmea. É estimado que os indivíduos transgêneros compreendam 0,3% da população adulta dos Estados Unidos.

Pouco se sabe sobre as causas da transsexualidade e muitos dos estudos que foram conduzidos, principalmente estudos psicológicos, têm sido amplamente desacreditados. No entanto, os cientistas parecem ter algumas informações sobre a base biológica de muitos fatores.

Em primeiro lugar, a identidade de gênero é genética? Parece que a resposta é sim, embora na maioria das características envolvendo identidade existe influência do ambiente. Uma maneira clássica de os cientistas testarem se uma característica (que pode ser qualquer uma, desde cabelo ruivo até susceptibilidade ao câncer) é influenciada pela genética é estudo com gêmeos. Gêmeos idênticos (univitelinos) têm a mesma configuração genética e normalmente são criados no mesmo ambiente. Gêmeos não idênticos (bivitelinos) entretanto, compartilham apenas metade dos genes mas tendem também, a crescerem no mesmo ambiente. Então se gêmeos univitelinos  tem uma maior tendência a compartilhar uma característica do que gêmeos bivitelinos, essa característica é provavelmente influenciada pela genética. Diversos estudos têm mostrado que gêmeos univitelinos são mais frequentemente ambos transgêneros do que gêmeos bivitelinos, indicando que de fato há influência genética para essa identidade. 


Figura 2: Mulheres transgêneras tendem a ter estruturas cerebrais que se assemelham a mulheres cisgêneras, ao invés de homens cisgêneros. Duas áreas sexuais dimórficas do cérebro (diferentes entre homens e mulheres) são comumente comparadas entre homens e mulheres. O núcleo leito da estria terminal (BSTc) e o núcleo sexual dimórfico de mulheres transgêneras são mais parecidos com os de mulheres cisgêneras do que com os de homens cisgêneros, o que sugere que a estrutura geral do cérebro dessas mulheres correspondem a sua identidade de gênero. 


Em 1995 e 2000, dois grupos independentes de pesquisadores decidiram examinar a região do cérebro chamada Núcleo Leito da Estria Terminal (BSTc) em homens e mulheres trans e cisgêneros (Figure 2). Essa região está ligada à ansiedade e é em média duas vezes maior em tamanho e densidade celular em homens em comparação com as mulheres. Este dimorfismo sexual é bastante considerável e embora os cientistas não saibam porque ele existe, ele parece ser um bom marcador para diferenciar cérebros de mulher e de homem. Sendo assim, esses estudos buscaram examinar cérebros de pessoas transgêneras para descobrir se eles se assemelham mais ao seu sexo atribuído ou percebido.

Surpreendentemente ambos os grupos constataram que mulheres transgêneras (homem para mulher) tinham o BSTc mais parecido com os de mulheres cisgêneras tanto em tamanho quando em densidade celular, e que homens transgêneros (mulher para homem) tinham o BSTc assemelhando-se aos dos homens cisgêneros. Essas diferenças permaneceram quando os cientistas levaram em consideração o fato de que muitos transgêneros que participaram do estudo haviam tomando estrogênio e testosterona durante sua transição. Eles incluíram mulheres e homens cisgêneros que também teriam realizado tratamento com hormônios que não correspondem ao sexo biológico atribuído, por questões médicas variadas. Essas descobertas foram confirmadas por outros estudos posteriores em outras regiões do cérebro, incluindo uma região chamada núcleo sexual dimórfico (Figura 2) que acredita-se afetar o comportamento sexual dos animais.

O fato de a estrutura e a composição cerebrais serem amplamente afetadas por tratamentos hormonais tem sido demonstrado conclusivamente. Devido a isso, a maioria das equipes de cientistas busca estudar os cérebros de homens e mulheres transgêneros que ainda não tenham se submetido a tratamento hormonal. Diversos estudos confirmam os achados anteriores mostrando que as pessoas transgêneras aparentam ter nascido com cérebros mais parecidos com os do gênero com o qual se identificam, ao invés daquele que lhes foi atribuído.

Embora os tratamentos hormonais tenham levantado dúvidas sobre os estudos anteriores, eles também possibilitaram o entendimento de como as diferenças na anatomia cerebral podem ter surgido. O desenvolvimento cerebral é fortemente influenciado pelo ambiente pré-natal, aonde há exposição hormonal no útero materno. Alguns cientistas acreditam que homens transgêneros (mulher para homem) podem ter sido expostos a níveis inadequados de estrogênio durante seu desenvolvimento (Figura 3). Este fenômeno poderia apresentar duas causas: 1) Insuficiência de estrogênio no ambiente fetal; ou 2) Estrogênio suficiente no ambiente fetal porém baixa sensibilidade do feto para o mesmo. Isso seria o mesmo que  uma torre de sinal telefônico que deveria controlar as chamadas remotas. No primeiro cenário, a torre não estaria produzindo sinal suficiente para se completar a ligação; e no segundo cenário, o telefone estaria desabilitado para processar o sinal. Em ambos os casos a ligação não ocorre.

Figura 3: Cenários possíveis para a feminização insuficiente. Durante a feminização normal, satisfatórios níveis de estrogênio estão presentes no ambiente fetal. O estrogênio é reconhecido pelas células fetais e desencadeia o desenvolvimento de um feto feminizado. No cenário 1 uma baixa quantidade de estrogênio está presente no ambiente fetal, então embora as células fetais sejam capazes de perceber o estrogênio, os baixos níveis do hormônio fazem com que o feto seja insuficientemente feminizado. No segundo cenário existe estrogênio suficiente no ambiente fetal, mas as células do feto não percebem o hormônio e o feto também é insuficientemente feminizado. 


A quantidade de estrogênio no ambiente fetal é difícil de ser medida, mas há evidências de que pessoas transgêneras possuem baixa sensibilidade hormonal no útero. Uma equipe de pesquisadores descobriu que o receptor de estrogênio aparenta ser menos eficiente em homens transgêneros (mulher pra homem), o que faz com que um feto fêmea acabe masculinizado. Por outro lado, os estudos psicológicos que tentam revelar as causas da transsexualidade em grande parte não conseguem ganhar forças nos tempos modernos. Durante muitos anos psicólogos caracterizaram a identidade de gênero como uma desordem psicológica. Alguns, por exemplo, acreditavam que ela era um mecanismo de enfrentamento para "retificar" os sentimentos latentes de homossexualidade ou o resultado de trauma ambiental. Nenhum estudo foi capaz de comprovar isso, o que leva essas “descobertas” a serem consideradas ultrapassadas e muito criticadas por suas implicações discriminatórias. Outros psicólogos tentaram diferenciar grupos de transgêneros baseados em fatores como QI e etnia. Essas teorias têm sido amplamente rejeitadas devido a falhas metodológicas e problemas éticos.

Enquanto a lista de causas da identidade transgênera continua a crescer, tem se tornado claro que ela não é uma escolha consciente. 63% dos transgêneros já vivenciaram discriminação de forma regular, incluindo prisão, situação de rua e abuso físico. A ciência diz que o gênero certamente não é binário e nem mesmo um espectro linear. Assim como as outras tantas facetas da identidade, ele pode operar em diversos níveis e até mesmo além das tantas definições. Ele também aparenta não ser estático como nós assumimos. A identidade transgênera é complexa e é improvável que possamos atribuí-la a um conjunto único de causas puro e limitado, e ainda há muito a ser aprendido. Porém, agora sabemos que algumas dessas causas são biológicas. Essas pessoas não estão sofrendo uma doença mental ou caprichosamente escolhendo uma identidade diferente. A identidade transgênera é multidimensional e não merece menos reconhecimento ou respeito do que qualquer outro aspecto da espécie humana.


Fontes: